O Comércio do Porto

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quinta-feira, setembro 08, 2005

Sugestão de leitura: “O Sol dos Scorta” – Laurent Gaudé



Sol inclemente sobre pequena aldeia italiana

Rui Azeredo

“O Sol dos Scorta”, do francês Laurent Gaudé, a ser editado em breve pela ASA, pode já ser considerado, sem qualquer margem de risco, um dos melhores romances do ano, tal a qualidade da escrita, a imaginação e o realismo com que está impregnado - não foi por acaso que ganhou o prestigiado Prémio Goncourt 2004.
Neste romance, do mesmo autor de “A Morte do Rei Tsongor”, cerca de 220 páginas chegam para contar a saga de uma família amaldiçoada, com raízes numa pequena, quente e seca aldeia do sul de Itália, Montepuccio. Gaudé descreve de forma sublime essa aridez, que da geografia escorre para as personagens. O início da obra, aliás, é revelador. Um homem, um burro, calor e uma aldeia deserta na hora da canícula, logo após o almoço.
É uma saga familiar, mas à escala da pequena Montepuccio. Os Scorta, a família em causa, são poderosos, mas naquele ambiente pequeno, fechado e atrofiador, onde só há gente que se revela incapaz, por falta de preparação, de sobreviver longe dali.
A história começa em 1870, quando Luciano Mascalzone, um bandido que esteve preso quinze anos, regressa à “sua” Montepuccio. Sabe que nada de bom o espera – sabe que a morte é quase certa – mas tem uma obsessão: possuir Filomeni Biscotti, um desejo da juventude que o manteve vivo na prisão. Entra na aldeia, com o seu burro, na hora em que todos se escondem, na hora do Sol inclemente, e vai directo a casa de Filomena. Sem Luciano perceber, quem lhe abre a porta é a irmã mais nova desta, Immacolata, como o nome deixa adivinhar ainda virgem. Ela deixa-se violar pelo regressado, que não se apercebe da “troca”. Pensando ter cumprido o seu sonho de juventude, atravessa de novo a aldeia, mas desta vez não escapa à fúria dos aldeões, acabando por morrer satisfeito, sem saber que tinha possuído a mulher errada – Filomena havia morrido há já vários anos.
Immacolata viria a dar à luz Rocco, mas morre quase de imediato. Os aldeões, sendo Rocco filho de quem era, pretendem matá-lo, mas a criança é salva pelo padre e enviada para outra aldeia, onde viria a ganhar o nome Scorta – nascia assim, de um equívoco, uma nova linhagem. Tal como pai, Rocco dedicou-se à vilanagem inspirando temor em Montepuccio e redondezas. Assim seria em gerações futuras, de todas nos contando a história Gaudé. Os Scorta acabam por ganhar o respeito dos habitantes de Montepuccio, tanto pelo dinheiro que forma amealhando como pelo temor que inspiravam. Mas “O Sol dos Scorta” é, essencialmente, um livro sobre a importância dos laços familiares (ou de sangue) que resistem a todo o tipo de adversidades.
É a história de uma família amaldiçoada ao longo dos anos, e ao mesmo tempo a história de uma (como muitas outras) pequena aldeia com dificuldades em atravessar a passagem do tempo e a acompanhar a evolução natural. É que Gaudé descreve também os contrastes entre a tradição e a modernidade, nomeadamente com a chegada do turismo.
A religião é outro dos temas-chave deste romance, sendo explorada através da relação dos Scorta com os padres que se vão sucedendo na aldeia, uns mais abertos, outros mais retrógrados, mas sempre com um afecto especial, e até estranho, por aquela família onde Bem e Mal têm contornos pouco definidos.

Pequena biografia de Laurent Gaudé

Laurent Gaudé, que no dia 26 de Setembro vai apresentar “O Sol dos Scorta” em Lisboa, nasceu a 6 de Julho de 1972, em França.
Estreou-se como escritor em 1996 com o conto “Une Fille et Trois Garçons”, seguindo-se, em 1999, a peça de teatro “Combats de Possédés”.
Em 2001 Gaudé estreou-se no romance com “Cris”, inédito em Portugal.
“A Morte do Rei Tsongor” (Edições ASA), um original de 2002, foi a obra com que se “apresentou” aos leitores portugueses – este romance ganhou o Prémio Goncourt dos Estudantes e o Prémio dos Livreiros franceses.
Em 2004 lançou em França “O Sol dos Scorta”.