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quinta-feira, setembro 29, 2005

Sugestão de leitura: “Os Piores Contos dos Irmãos Grim” – Luis Sepúlveda e Mário Delgado Aparaín

Ironia implacável

Rui Azeredo

Os irmãos Grim (assim mesmo, só com um “m”) são os protagonistas do último livro do chileno Luis Sepúlveda e do uruguaio Mario Delgado Aparaín e nada têm a ver com os Irmãos Grimm alemães autores de contos de fadas que inspiraram o novo filme de Terry Gilliam. Nada, quer dizer, quase nada… Afinal, em ambos os casos, são dois irmãos, chamam-se Grim(m), existiram na realidade e inspiraram autores contemporâneos (de literatura e de cinema) para duas histórias cómicas e delirantes, onde a fantasia impera sobre o verídico. Outro ponto em comum: se o filme é dirigido por Terry Gilliam, o livro, reconheceu Sepúlveda, tem muito de Monty Python, precisamente o grupo de humoristas onde o realizador se revelou.
“Os Piores Contos dos Irmãos Grim” (Edições ASA), escrito em parceria por Sepúlveda e Aparaín, surgiu depois do autor chileno ter visto uma notícia do início do século XIX sobre dois “payadores” (pessoas que pagavam com cantigas a comida e o alojamento) que tinham sido apupados por uma plateia em fúria numa festa numa fazenda na ponta sul do Chile - até objectos lhes atiraram. Curioso com a história destes irmãos (os tais Grim), Sepúlveda prosseguiu a pesquisa e descobriu que eles embarcaram para o Uruguai, ali mesmo ao lado. Coube então a Aparaín a tarefa de detective e este descobriu, em jornais uruguaios da década de 20, que os dois irmãos se mantiveram activos e com o mesmo resultado: apupos e lançamento de objectos para o palco.
E nada mais se soube deles!
Sepúlveda e Aparaín viram aqui o ponto de partida para concretizar um projecto antigo, um livro escrito a meias. E o resultado é “algo completamente diferente”. Um romance epistolar sobre a vida (imaginada) dos dois irmãos Grim, curiosamente chamados Abel e Caim. “Os Piores Contos dos Irmãos Grim” é um livro humorístico onde a ironia é rainha e o “nonsense” uma presença constante. A pretexto dos irmãos Grim muitas histórias são contadas, umas baseadas em factos reais outras pura imaginação dos autores, invariavelmente todas muito divertidas.
Neste romance, assente numa troca de correspondência entre dois estudiosos dos Grim, os professores Segismundo Ramiro von Klatsch, da Patagónia, e Orson C. Castellanos, do Uruguai, cabe todo o tipo de personagens, a maior parte delas inspiradas em figuras reais. Afinal, basta atentar nos seus nomes: Miguel Strogoff, Humberto de las Mercedes Bogart, Juanito Weissmuller, Carloto Heston, Genaro Kelly, Pancho Lancaster, George Bushtamante, entre outros.
Os temas abordados vão da política à religião, passando pela defesa do meio ambiente, havendo lugar a homenagens a amigos dos autores ou a locais que os marcaram. A Póvoa de Varzim é um desses lugares e merece uma curiosa referência: “...embarcações capazes de navegar directamente para o Oceano Atlântico e, daí, continuar em linha recta até às costas portuguesas da Póvoa de Varzim, onde é conveniente chegar depois do pôr-do-sol, hora crepuscular em que os libertinos dessa povoação tratam de se desfazer das tangas usadas durante o dia, põem-nas a secar nas suas vistosas varandas de azulejos e se entregam ao ritual de se enfrascarem com vinho verde até ficarem profundamente adormecidos e com muito pouco sangue na torrente alcoólica” (pág. 53).
Cheio de ritmo, este livro lê-se com imenso prazer, não só pelas gargalhadas que pode proporcionar, mas também pelo gosto de se descobrir a realidade travestida pela ironia implacável de Sepúlveda e Aparaín, que assim conseguem fazer uma implacável crítica sociall e política que atravessa todo o século XX e entra já no XXI.
“Os Piores Contos dos Irmãos Grim” é um livro muito divertido, mas que pode e deve ser levado a sério. A denúncia, a crítica, a acusação estão presentes, lado a lado com o agradecimento e a homenagem. Tudo muito bem misturado e ainda melhor servido.

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